A erncarnação do Leviatã

Este estudo constata que na estrutura da Igreja Adventista do 7º Dia não aconteceu a encarnação do Evangelho, mas a encarnação do Leviatã, a forma monstruosa do poder político. Organizou-se como um Estado moderno, o que a Igreja não é.

22/11/2012

3. O MITO DO MODELO DIVINO DE ORGANIZAÇÃO

Escultura antiga, sobre o mito cosmogônico dos sumérios, encontrada na Mesopotâmia. O rei aparece situado entre o mundo divino e o mundo humano.

No capítulo anterior, vimos que o Manual da IASD, em sua versão teísta da organização, apresenta a forma de governo da IASD como uma imitação da ordem divina. De onde vem essa ideia de um modelo divino que a organização da sociedade deve imitar? Esse modelo divino é mito ou realidade?

Neste capítulo pretendo responder a essas perguntas mediante a apresentação de uma síntese histórica sobre a relação que se estabelece entre o mundo “divino” e o mundo “real”, para se obter fundamentos religiosos e metafísicos que orientem a organização da sociedade.

O leitor encontrará um histórico amplo, de considerável erudição, no livro O Mito do Estado (Rio de Janeiro, Zahar, 1976) do Prof. Ernst Cassirer. Essa obra aborda a sacralização das estruturas de poder encontradas nas principais formas simbólicas criadas pelo homem —Linguagem, Mito, História, Religião e Ciência—, e suas implicações na vida social, na teoria do Estado, no culto do Herói e da Raça.

A DOUTRINA DOS DOIS MUNDOS

Nosso ponto de partida é o que em antropologia se chama “a doutrina de dois mundos”, originada nas culturas arcaicas. Esta doutrina distingue dois mundos e os hierarquiza: há o mundo superior —o divino—, mais forte, contraposto ao mundo inferior —o humano—, mais fraco. A partir de seu surgimento, toda a cultura humana é um caminhar dentro dessa dicotomia. Ela comparece na base da história do ser humano.

Para que o homem antigo pudesse contar com os favores dos deuses e atingir o nível superior da existência, a dicotomia lhe impunha como condição ter o mundo divino como modelo. Daí, a imitação da divindade ter-se tornado uma preocupação dominante. E é isso o que mais dificulta esse homem de existir como ser humano e integrar-se ao mundo, porque o leva a criar formas de vida e estruturas de poder baseadas em dados que não são humanos.

Na doutrina dos dois mundos se fundamentam os mitos que orientam a organização das sociedades antigas e estabelecem as relações de poder. E é nos mitos onde se encontra a origem do conceito de poder que, depois de sofrer mutações, se transforma no poder soberano do Leviatã.

 A FUNÇÃO DO MITO

Segundo François Houtart (Religião e Modos de Produção Pré-capitalistas. São Paulo, Paulinas, 1982), toda sociedade "é fruto de relações que se estabelecem entre grupos humanos a fim de assegurar sua subsistência imediata e histórica. Simultaneamente, tais grupos constroem um universo de representações —uma espécie de realidade em um segundo nível— que interpreta a realidade material, a relação do homem com a Natureza e as relações sociais, dando-lhes assim um sentido. E é esse sentido que fornece a base para os sistemas de práticas sociais que possibilitam a reprodução das relações, oferecendo assim um modelo ou quadro de comportamento para os indivíduos ou grupos".

A esse universo de representações simbólicas pertencem os mitos sociais e os mitos cosmogônicos do mundo antigo, manejados pela religião e pela política, a fim de reproduzir as relações sociais estabelecidas. O Prof. Ernst Cassirer diz que o simbolismo mítico surge da busca do significado do ser, sob a pressão de profundos desejos individuais e violentos impulsos sociais. Em sua forma final, o mito é uma objetivação da experiência do homem, não de sua experiência individual, mas coletiva. Em O Mito do Estado, mostra como o pensamento mítico dominava a vida prática e social do homem antigo, e como domina ainda a vida política do homem moderno.

MITO E PODER

O simbolismo mítico conduz também a uma objetivação de sentimentos sobre as relações de poder. Os deuses dos povos antigos eram personificações das forças da natureza e das forças humanas, sobretudo da força da coesão social. Os panteões politeístas da religião cananeia, egípcia, mesopotâmica, grega e romana (parte importante do mundo em que foi escrita a Bíblia), eram representações simbólicas das relações de poder estabelecidas pela simbiose entre religião e política.

Nas sociedades antigas, cada uma de acordo com seus mitos, o rei tinha uma relação íntima com a divindade, como seu lugar-tenente. Os deuses são os "proprietários" do mundo e do cosmo, e o rei os representa. Consequentemente, o rei é o senhor absoluto de sua terra e sua palavra é definitiva. Os mitos sociais faziam cada povo ver em seus deuses nacionais a deificação de si mesmo em sua unidade como corpo social.

Está claro que esse outro mundo que serve como modelo não existe de fato. Ele é uma representação simbólica da forma de vida social e política dos seres humanos. Não é o mundo divino, e sim a divinização da representação simbólica das relações de poder estabelecidas na sociedade humana.

A necessidade do mito é também explicada pelo desejo de dominar que faz parte do homem. Porém, este desejo encontra um obstáculo: a lei de natureza que leva a todo ser humano a reconhecer os outros como seus iguais. Então, o homem dominador recorre ao mito a fim de criar, artificialmente, sua superioridade com relação aos outros, fazendo seu poder derivar de um suposto mundo divino.

No passado, as elites religiosas e as elites governamentais falavam ao povo através dos mitos. Diziam: “Nosso poder vem dos deuses. A organização de nossa sociedade segue o modelo divino. Os deuses querem que assim seja”. O mesmo acontece com a versão teísta da organização apresentada pelo Manual da IASD. O modelo divino que usa como referência é uma representação simbólica da máquina administrativa da IASD. Uma maneira da elite dominante adventista dizer: “Nossa forma de governo está de acordo com o modelo divino. Deus quer que ela seja assim”.

Mas tal versão teísta não está calçada diretamente nos mitos antigos, e sim na forma que lhes foi dada pelo racionalismo cristão medieval.

A DICOTOMIA NOS PENSADORES MEDIEVAIS

Anselmo de Cantuária
Agostinho de Hipona












 








Os pensadores cristãos medievais têm considerável importância, porque procuraram estabelecer as bases religiosas e metafísicas para a ordem na sociedade, mantendo-se, a seu modo, dentro da linha da doutrina dos dois mundos. Partem do racionalismo grego clássico. Porém, acreditam que apenas a razão não é suficiente, ela precisa ser guiada por uma fonte de iluminação mais alta — a fé cristã.


Em A República, Platão afirma que “Existe um modelo nos céus para aquele que deseja vê-lo, e vendo-o, encontrar um em si próprio”. Sete séculos depois, Agostinho retoma à questão. Em a Cidade de Deus, ele procura outro mundo para ter como referência para o mundo real. Devido à mediação da fé, a relação entre o mundo “real” e o mundo “ideal” no pensamento cristão medieval é diferente da que se encontra na especulação grega. Pensadores escolásticos como Anselmo de Cantuária (Cur Deus homo) e Abelardo (Epistolae) afirmam que a razão não pode ser sua própria luz; para realizar sua obra ela necessita de uma fonte de iluminação mais alta — a fé. (Para saber mais veja F. W. Maitland, Political Tehories of the Middle Age, Cambridge, 1900).

É por esse caminho que a doutrina dos dois mundos contamina o cristianismo e chega à IASD. Mesmo que se introduza a fé cristã para estabelecer a relação entre os dois mundos, o pensamento sobre o mundo “ideal” ou “divino” sempre será mítico. Qualquer homem ou grupo de homens que afirme conhecer o verdadeiro mundo divino é um charlatão.

A QUESTÃO NOS TEMPOS MODERNOS

Nos tempos modernos toda essa problemática da dicotomia retorna. Depois da Renascença, com as viagens, os descobrimentos e tudo o mais, o mundo passou a ser visto como um conjunto, uma unidade, um objeto imenso à disposição do homem. O que transforma o desejo de dominar num desejo cosmicamente ampliado. No século XVII começa a se armar a investida decisiva contra a dicotomia do mundo com os primeiros surtos da filosofia e da ciência modernas.

Mas é a revolução burguesa que cria condições para que a dicotomia entre numa crise radical e muito violenta. O projeto burguês quer abolir os dois mundos a fim de que comece a humanidade do homem. Um exemplo dessa crise é “a morte de Deus”, isto é, a ideia de que não existe mais um Deus a quem devemos imitar. Esta crise, paradoxalmente, é positiva, pois mostra que o homem está em processo de transformação.

A necessidade de fazer Deus desaparecer resulta de sua identificação com o modo de agir das divindades da dicotomia, com a ambiguidade do passado. O mito de Prometeu nos leva ao cerne do problema gerado pela interferência dos deuses. Ele é punido porque aprendeu a lidar com o fogo. Isto significa que os deuses agem como se tivessem ciúmes do ser humano. Sempre que este consegue dominar algum elemento da natureza, sofre a vingança divina para impedi-lo de tomar conta deste mundo. Essa ingerência seria como se o problema continuasse indefinidamente, como se a solução fosse o desaparecimento dos deuses. 

Esta solução era apresentada pelo teatro da Grécia antiga, um verdadeiro culto religioso. A função da máquina teatral grega era fazer aparecer e desaparecer os deuses. Na época da ascensão da burguesia, o Vaticano era —e ainda é— uma réplica cristã do mundo divino da dicotomia, e o alto clero havia assumido um comportamento nos moldes dos deuses mitológicos: em nome de Deus, só aceitava a organização da sociedade no sentido transcendental, teológico da doutrina dos dois mundos. A “morte de Deus” e a “descristianização” da Europa resultam do esforço do homem para livrar-se da ingerência “divina”, que o impede de realizar o velho desejo de dominar.

Removida a ambiguidade, há uma transformação não só da técnica, da filosofia, da ciência, mas também do poder. O desejo de dominar, de ser senhor, continua nesse processo de derrocada da dicotomia. Porém, já não se pensa o poder como sendo algo transcendente, uma dádiva divina. Agora é o que é: coisa dos homens. (As relações e rupturas entre os pensamentos políticos antigo e moderno estão no livro de Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, Editora Perspectiva.)

O mito havia sustentado o poder transcendente da realeza durante milênios. Chegou à Europa dos tempos modernos com algumas mutações provocadas pela influência do cristianismo. A mais importante é esta: o poder do Príncipe não deriva mais dos deuses pagãos, mas de Deus. A monarquia absoluta governa com base no “direito divino dos reis”. Dentro dessa linha de pensamento, surge o Leviatã —o Estado monstruoso, artificial e mecânico—, cujo poder soberano imita a Deus: é um poder único, absoluto, perpétuo, irresistível e onipresente que agrega as pessoas; é o criador do súdito obediente; arroga-se o monopólio de atribuir, cancelar, instituir e redistribuir os direitos e os deveres de cada um, dando normas e leis. As teorias racionalistas do Estado o apresentam como o reino da verdade sobre a terra, a encarnação da justiça, o instrumento da verdadeira liberdade e outros epítetos desse tipo.

Derrubada da Bastilha
A Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789) —ambas inspiradas nos ideais democráticos do Iluminismo— contribuem decisivamente para uma mudança radical na forma de pensar o político, de organizar a sociedade no Ocidente e geram as condições para a ascensão da burguesia. O Estado burguês derrota o regime absolutista e o mito do poder transcendente. Não diviniza o poder — no Estado democrático, o poder de Estado é concebido apenas como o poder de Estado. Não usa um modelo divino — as estruturas da sociedade são uma criação humana, pertencem a este mundo. Por isso, não existe a simbiose entre religião e política, da qual depende a sobrevivência do poder transcendente. Há separação entre Igreja e Estado. E valores judaico-cristãos —como liberdade, igualdade e fraternidade— foram secularizados e são manipulados juridicamente.


Numa época na qual não se admite a trapaça de se exercer o poder em nome de Deus e constituir a sociedade de acordo com um modelo divino, o Manual da IASD insiste em apresentar sua versão teísta da organização, que confunde poder eclesiástico com poder de Deus, e organização eclesiástica com ordem divina. Não percebe que os tempos mudaram, que as pessoas já não são tão ingênuas. As mais lúcidas não aceitam que o leviatã adventista —a estrutura monstruosa, artificial e mecânica da IASD— seja uma cópia da ordem do mundo divino.

Por tudo o que foi visto até aqui, concluímos que a versão teísta da organização adventista está dentro da linha de pensamento mítico que começa na doutrina dos dois mundos, avança nos mitos sociais, adquire traços racionais no racionalismo grego clássico e é introduzida no cristianismo pelos pensadores medievais.

Os ideólogos adventistas enveredaram pelo caminho do mito depois de descobrirem que era impossível justificar a monstruosa máquina administrativa com princípios bíblicos.

 A QUESTÃO NA BÍBLIA


Essa problemática da dicotomia do mundo, que induz à imitação de Deus, comparece na Bíblia a partir dos capítulos iniciais do Gênesis. Esses capítulos enfrentam os mitos sociais antigos que divinizam abertamente o poder e colocam um suposto mundo divino como referência para organizar a vida social. Foram as civilizações mesopotâmicas paralelas de Suméria e Acade as que forneceram a todos os povos circunvizinhos de Israel os modelos de mitos sociais. Os mais difundidos e influentes foram o Enuma elish, um poema sobre a criação do mundo, que afirmava que os babilônios eram descendentes diretos da divindade, a fim de justificar o domínio deles sobre outros povos; e a Lenda de Gilgamés, uma epopéia sobre a busca frustrada da imortalidade, mediante o comer a fruta que faz o homem como um deus, por um herói. (Para saber mais sobre esses mitos veja Juan Errandonea Alzuguren, Edén y Paraiso. Fondo Cultural Mesopotâmico en el Relato Bíblico de la Creación, Madrid, Marova, 1966; e Oswald Loretz, Criação e Mito: Homem e Mundo Segundo os Capítulos Iniciais do Gênesis, São Paulo, Paulinas, 1979.)

O uso de expressões e elementos imaginativos tomados desses mitos pelas narrativas do Gênesis serve para formular ideias radicalmente diferentes do que essas mesmas imagens significavam nos mitos; ou, dito de outro modo, serve para tornar evidente que esse livro está em conflito com as ideias contidas nos mitos. Sua intenção, segundo Gerhard von Rad (Teologia do Antigo Testamento), é realizar uma enérgica purificação do pensamento mítico e obter um grau máximo de concentração no puramente teológico. Logo, se queremos entender o Gênesis, é preciso projetar seu conteúdo sobre o fundo cultural do Antigo Oriente Médio.

O ponto de partida da investida da Bíblia contra o poder transcendente e as formas de vida baseadas na doutrina dos dois mundos é a teologia da criação do Gênesis. Nesta teologia tem início uma linha de severa crítica ao poder, que termina no Apocalipse. Por razões óbvias, esta linha de pensamento jamais é estudada e comentada, em seu verdadeiro sentido, na IASD. A teologia da criação é ignorada pelos adventistas porque se dedicam a defender o criacionismo, uma corrente filosófica que passa por alto as verdadeiras intenções das narrativas sobre as primeiras origens. Até o Comentário Bíblico oficial da IASD faz isso. Portanto, convém darmos uma olhadela, a grandes passos, nos conceitos mais relevantes apresentados nessa linha de severa crítica ao poder.

Nos relatos da criação, Deus é apresentado como Aquele que nos faz ser e, por isso mesmo, Ele constitui o centro de nossas vidas. Dependemos dEle por completo porque aquilo que sustenta nosso ser não vem de nós mesmos. Portanto, o Criador de todos os seres e coisas deste mundo é o único soberano do homem. Sua soberania é soberania de amor. Ele usa seu poder criador cósmico por puro amor a Suas criaturas.

Ao contrario dos mitos da criação dos povos vizinhos de Israel, nas narrativas do Gênesis Deus não usa nenhuma substância divina para criar o homem. (Não usa, por exemplo, lágrimas do deus sol, como se dizia no Egito, nem sangue de um deus abatido, como no mito babilônico.) Usou unicamente elementos tirados da terra. O homem é um ser terreno (ou “terroso”). Foi criado para ser um ser humano (humano vem de húmus = terra). Tanto o mundo quanto o homem não tem e não podem ter nada da natureza divina, pois foram criados fora de Deus e distintos de Deus; e assim devem continuar existindo. Disso, as narrativas concluem: o misterioso desejo de “ser como Deus” (Gên. 3:5), inspirado pela dicotomia, é ilegítimo; e transformar este planeta num mundo cheio de deuses pela divinização da forças da Natureza ou da coesão social, como faziam os povos antigos, fogem à realidade, ao desígnio original de Deus.



Segundo Gên. 3, o mal surgiu no mundo no momento em que o homem decidiu imitar a Deus. Na narrativa, comer da fruta proibida e querer ser como Deus é a mesma coisa. Refere-se ao poderoso e ilegítimo impulso, suscitado misteriosamente pela serpente, de auto-elevação da esfera do humano para a esfera do divino. A imitação de Deus é a causa de todos os males porque provoca a ruptura do homem com sua natureza humana e com aquilo ao qual ele pertence e o define. Nas Escrituras, a vida boa é o resultado da obediência ao desígnio original de Deus. Jamais é vista como nas formas de vida fundadas na dicotomia — o resultado da imitação de Deus ou de se ter o mundo divino como modelo.

Quanto ao governo do mundo, o desígnio de Deus é este: Deus tem domínio sobre o homem e este tem domínio sobre os animais (Gên. 1:26). E o governo do mundo não é dado a grandes indivíduos ou a um grupo de indivíduos, mas à comunidade humana na multiplicidade de seus membros (Gên. 1:28). Porque todos tem a mesma condição humana, esta igualdade de estado não admite que alguém se sinta superior ao ponto de querer dominar seus semelhantes. O homem é “imagem” e “semelhança” de Deus (não igual a Deus) quando representa o Criador, exercendo o domínio na Natureza com amor, fazendo que a vida, no sentido de Deus, seja possível.

As narrativas mostram que o homem sempre é cerceado nessa sua vontade de domínio, pois descobre que no mundo residem forças que ele não pode dominar e que sua dominação é destruidora. São exemplos disto a expulsão do paraíso, o assassinato de Abel por Caim, a corrompida geração pré-diluviana, o mundo das nações em eterno conflito, entre outros.

A narrativa de Gên. 11:1-9 investe contra o poder derivado da divindade usando um exemplo histórico, concreto: o reino de Babilônia, caracterizado pela utilização conjunta da religião e da política como pilares sustentadores de uma estrutura que oficializa a auto-elevação, isto é, a pretensão dos potentados de terem um poder derivado de Deus.

É o que a narrativa denota com a menção conjunta da torre e da cidade. Com certeza a torre é um zigurate, uma torre-templo de patamares, o lugar sagrado da religião dos semitas habitantes da Baixa Mesopotâmia. Os babilônios chamavam-na de Etemenanki (Casa do fundamento do céu e da terra). Tinha sete patamares; o mais alto era o santuário de Marduke (o Bel ou Merodaque da Bíblia), o deus estatal de Babilônia. Periodicamente, durante as grandes festas religiosas do Ano Novo, os potentados com seus pomposos séquitos, provenientes de todos os reinos, compareciam para escalar a grande torre-templo, a fim de tocar as mãos de Marduque e assim receber poder para governar por muitos anos. Marduque era o deus do poder e a torre-templo era a fortaleza e o santuário do poder.

O Etemenanki constitui um dos mais notáveis símbolos da auto-elevação do homem do plano humano para o plano divino no exercício do poder político. Expressava a primazia do rei e do reino de Babilônia no mundo. Segundo Apocalipse 18, o espírito de Babilônia vai estar presente no mundo das nações até o fim dos tempos, inspirando um poder transcendente que rivaliza com a soberania de Deus.

A investida atinge seu ponto alto no Gênesis quando as narrativas falam das origens de Israel: um povo criado pelo mesmo Criador do mundo para servir aos demais povos (a eleição da descendência de Abraão é para o serviço). Israel deveria ser uma bênção para as nações. “Servir” e “ser bênção” são novidades no mundo das nações, no qual a autopreservação induz cada povo a impor-se sobre os demais numa guerra contínua de todos contra todos, e as nações poderosas subjugam, dominam e até destoem as mais fracas.

Agora damos um salto até o Novo Testamento, para ver os momentos em que testemunha o rompimento de Jesus com a doutrina dos dois mundos. Inspirado por esta tradição, o homem antigo distingue entre o mundo divino e o mundo humano, o que o faz dividir os seres e coisas em categorias superior e inferior, sagrada e profana, pura e impura. Para Jesus, todos os seres e coisas naturais deste mundo são criação de Deus. Portanto, não há de se distinguir entre pessoas, animais ou coisas superiores e inferiores, sagradas e profanas, puras e impuras. Por esse motivo, Ele e Seus discípulos não praticavam os ritos judaicos de purificação (Marc. 7:1-23; Mat. 15:1-20). Em uma visão, o apóstolo Pedro é ensinado a não usar os padrões da dicotomia, adotados pelos judeus, para fazer distinções desse tipo entre pessoas (Atos 1l:1-17).

Quanto à questão do poder, Jesus a levou às últimas consequências: renunciou ao poder, ensinou e viveu o amor como sendo a antítese do poder. O hino atribuído à igreja primitiva, transcrito pelo apóstolo Paulo em Fil. 2:6-11, fala assim da posição de Jesus frente à questão: Jesus Cristo renunciou ao poder que lhe era próprio da natureza divina para tornar-se ser humano; tornou-se ser humano no sentido de Deus ao não insistir em ser igual a Deus; adotou a natureza de um servo humilde e foi obediente a Deus até a morte; por isso, Jesus Cristo é reconhecido como o Senhor (ou seja, tornou-se Senhor pelo caminho oposto ao traçado pela dicotomia). E o apóstolo Paulo mostra —verso 5— no que consiste ser cristão: "Tenham entre vocês o mesmo modo de agir que Cristo Jesus tinha”.

As mil formas de relações de poder que formigam na IASD —a maioria das quais não temos consciência— são uma expressão do modo de agir de Jesus? Esta é uma questão que merece ser pensada e discutida.

A renúncia do poder não era só para Jesus. No dito de Mat. 20:25-28, Ele exige que seus seguidores não se dediquem a dominar uns aos outros como acontece entre os pagãos. Em vez disso, dá o seguinte mandamento: "Amem uns aos outros assim como eu os amei." E acrescenta: "Se tiverem amor uns pelos outros, todos saberão que vocês são meus seguidores" (João 13:34 e 35, compare com o verso 1, última parte). No Novo Testamento, não é o poder que conta e sim o amor. Por exemplo, o verdadeiro conhecimento de Deus consiste em amar, porque Deus é amor (1 João 4:8); o amor é o dom supremo, só tem valor diante de Deus aquilo que é feito por amor (1 Cor. 13).

Com a renúncia ao poder, Jesus abre o caminho para uma relação sã com Deus que, por sua vez, abre o caminho para uma nova relação com o próximo e para uma nova relação social de seus seguidores entre si. Para construir uma relação sã com Deus, Jesus usa sua imagem exclusiva de Deus como Pai, e que suplanta a imagem judaica e a imagem pagã de Deus como um imperador sentado em seu trono, impondo sua vontade a todos, determinando tudo mediante leis imutáveis. A imagem de Deus como Pai (Jesus chama carinhosamente a Deus de “Paizinho”) sugere uma relação de amor com Deus em vez de uma relação de poder. Jesus quer que as pessoas confiem em Deus como uma criança confia em seu amoroso pai. Na nova relação com Deus, não tem valor o que é feito por obrigação, porque é norma ou está prescrito na lei. Só tem valor o que é feito por amor a Deus e ao próximo.

Na relação com o próximo, Jesus exige de seus seguidores a demonstração de amor. E, para Jesus, “amar” não significa simpatizar com alguém. Significa demonstrar amor por aqueles que se tornaram próximos através de uma situação histórica específica, como na parábola do bom samaritano (Luc. 10:30-37) — quando Deus põe no caminho alguém que necessita de auxílio abnegado. Ou como no dito sobre o grande julgamento final (S. Mateus 25:34-40): “Porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era forasteiro e me hospedastes; estava nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; preso e fostes ver-me.” O amor ao próximo que Jesus exige é o amor ilimitado, que aparece no amor ao inimigo (Mat. 5:44) e no perdão total (Mat. 6:12; Luc. 17:4).

A nova relação social entre os seguidores de Jesus está baseada no conceito “servir” (Mat. 20:25-28). Entre os discípulos valem outras regras do que no campo do político. Para os poderosos o amor é uma fraqueza, e o poder é uma virtude dos que são superiores. Mas, para Jesus, quem renuncia ao poder e enfrenta o mal demonstrando amor, abre-se ao reino de Deus.

O golpe mortal contra a dicotomia, consequentemente contra o desejo inspirado por ela de imitar o mundo divino, aconteceu quando Deus inverteu o sentido desse desejo ilegítimo e se fez ser humano em Jesus Cristo. Através da pessoa e da atividade de Jesus, que renuncia ao poder em favor do amor, Deus resgata e estabelece para sempre o valor e o significado da humanidade. Jesus Cristo é a única pessoa que define para sempre, nele mesmo e em sua atividade, o que significa ser um ser humano no sentido de Deus.

É muito significativo que essa linha de severa crítica ao poder termine no Apocalipse com a destruição do monstro do poder, que se opõe a Cristo, e o estabelecimento definitivo do reino escatológico de Deus, mediante a destruição dos reinos deste mundo, que seguem o monstro e disputam a soberania com Deus.

O mundo divino da dicotomia, que a versão teísta dos adventistas tem como modelo de organização da sociedade, é uma mera auto-representação coletiva. Esse mundo não existe na realidade. Existe apenas na forma de grandes arquétipos, grandes imagens, que habitam o inconsciente coletivo e o inconsciente individual de grupos e de pessoas que ainda não se libertaram da arcaica doutrina dos dois mundos, amplamente combatida na Bíblia.

Como os adventistas deslizaram para todos esses deslocamentos conceituais que geram confusões e equívocos?

A resposta mais plausível é esta: quando a Igreja prioriza seu sistema de ordem, os princípios bíblicos, principalmente as exigências de Jesus, são deturpados ou deixam de ser fundamentais. E isto tem suas consequências. A organização torna-se um fim em si. A pregação do Evangelho é substituída, em parte, pela propaganda denominacional e pela promoção de atividades institucionalizadas. Doutrinas particulares são elaboradas, mediante uma cuidadosa seleção de temas e de textos bíblicos, para estabelecer e manter a identidade da organização. E o pior de tudo: “ser”, no sentido de Deus, exigido por Jesus, deixa de ser o mais importante. Cede lugar para “fazer”, no sentido das atividades institucionalizadas, que pode levar os funcionários ao farisaísmo, a viver de aparências.

Pelo visto neste capítulo e no anterior, a IASD revela uma atitude perturbadora: na doutrina, ela se apresenta como a dona da interpretação e da verdade, mas quando afirma que sua organização é de origem divina, ou é cópia de um modelo divino, vale-se do mito, da versão teísta da organização, enfim, do poder da ficção. Este poder é o disfarce que esconde dos olhos dos incautos a verdadeira natureza e as verdadeiras intenções do monstro .

Como o monstro realmente é? Como ele age revelando suas verdadeiras intenções? Enfrentaremos estas questões nos próximos capítulos, examinando primeiro a função administrativa e, depois, o processo e o comportamento administrativos.

Ir pasra: 4. Exame da Função Administrativa

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