![]() |
| Max Weber |
Aqui começa a tarefa de demonstrar que a forma de governo da IASD é um tipo original de burocracia representativa. A análise começa pela burocracia porque é a face oculta do leviatã adventista, e se concentra na função administrativa porque é o aspecto no qual a estrutura burocrática se torna evidente. Em primeiro lugar, como preparação para a análise, convém explicar o procedimento agora adotado e definir os principais termos usados.
PROCEDIMENTO E DEFINIÇÕES
A análise da burocracia segue os postulados de Max Weber tal como são apresentados no livro Ensaios de Sociologia (Rio de Janeiro, Zahar, 1979). Os números das páginas que aparecem, daqui em diante, depois do nome Max Weber e entre parêntese, referem-se a essa edição. A definição weberiana de burocracia ainda não foi superada. Definições posteriores apenas a complementam, acrescentando tendências atuais. Analistas de nosso tempo têm usado essa definição como base para estudos de estruturas burocráticas.
O termo “burocracia” é de origem recente. A palavra “bureau” foi usada inicialmente para designar o pano que cobria as mesas de trabalho dos funcionários franceses durante o século XVIII. Depois foi-lhe acrescentado um sufixo que significa “norma de governo” (como nos casos de “aristocracia” e “democracia”), provavelmente durante as lutas conta o absolutismo que precederam à Revolução Francesa. Durante o século XIX, foi usada em sentido pejorativo em diversos países europeus pelo críticos liberais com a finalidade de desacreditar os procedimentos dos funcionários dos governos autocráticos.
Burocracia tem hoje dois sentidos: o pejorativo e o técnico. O uso pejorativo é popular e expressa críticas contra as organizações complexas, os procedimentos de rotina nos quais estão implicados formulários e outros papéis, as normas rígidas, a lentidão e incompetência dos funcionários, a duplicação do esforço, a acumulação de cargos, a concentração do controle nas mãos de uns poucos, a dissipação de recursos e outros mais.
Mas esse uso pejorativo popular não deve ser confundido com “burocracia” tal como é usada pelos sociólogos em um sentido técnico para expressar aspectos modernos específicos da administração. Aqui empregamos esse termo exclusivamente no sentido técnico e conforme foi definido por Max Weber.
A definição de burocracia de Max Weber é o resultado de uma análise histórica comparativa. Ele percebeu a tendência geral das grandes organizações modernas —no Estado, nas empresas privadas, nas organizações eclesiásticas e partidárias— para a burocratização. Mesmo odiando a burocracia, porque a considerava um estorvo para o liberal, ele não pode deixar de reconhecer a inevitabilidade do controle burocrático nas grandes organizações modernas.
É importante perceber que essa definição refere-se a um tipo ideal de burocracia. Para chegar a esse tipo ideal, Max Weber simplificou e exagerou a realidade empírica a fim de constituir um modelo e favorecer a clareza dos conceitos. Portanto, nenhuma administração moderna é burocrática no sentido estrito e completo da definição. Cada caso concreto pode carecer de um ou vários dos elementos caraterísticos, ou pode possui-los em grau diferente. Não é raro encontrar casos mistos, nos quais a burocracia está associada a outras formas de administração. Este é o caso da forma de governo da IASD: a burocracia está associada à representação política.
Nossa análise é orientada não só no sentido de encontrar coincidências da burocracia da IASD com o tipo ideal de burocracia apresentado por Max Weber, mas também no sentido de estabelecer a originalidade da burocracia adventista. É preciso ter presente que a natureza da IASD impõe certos limites a sua aproximação com os modelos burocráticos dominantes na sociedade, devido ao fato de que uma certa distância separa a sociedade civil da religiosa.
Como indica o título deste capítulo, a análise foi limitada à função administrativa. Esta refere-se ao processo decisório e à influência exercida pelas autoridades eclesiásticas sobre os demais participantes desse processo. O procedimento consiste em mencionar os principais postulados de Max Weber, e apresentar exemplos concretos que comprovam que tais postulados foram adotados na forma de governo da IASD.
ÁREAS DE JURISDIÇÃO
A primeira característica da burocracia no modelo weberiano institui uma relação entre autoridades legalmente estabelecidas e seus funcionários subalternos, de acordo com certos direitos e deveres regulamentados de forma escrita. Tal relação tem como base o estabelecimento de áreas de jurisdição para as autoridades e seus funcionários subalternos. Passemos a palavra a Max Weber:
“Rege o princípio de áreas de jurisdição fixas e oficiais, ordenadas de acordo com regulamentos, ou seja, por leis ou normas administrativas.
1. As atividades regulares necessárias aos objetivos da estrutura governada burocraticamente são distribuídas de forma fixa como deveres oficiais.
2. A autoridade de dar ordens necessárias à execução desses deveres oficiais se distribui de forma estável, sendo rigorosamente delimitada pelas normas relacionadas com os meios de coerção, físicos, sacerdotais ou outros, que possam ser colocados à disposição dos funcionários ou autoridades.
3. Tomam-se medidas metódicas para a realização regular e contínua desses deveres e para a execução dos direitos correspondentes; somente as pessoas que têm qualificações previstas por um regulamento geral são empregadas.”
Qualquer pessoas que conheça a estrutura da IASD percebe logo que ela está plenamente de acordo com esta característica.
A estrutura de administração da IASD tem cinco áreas de jurisdição ordenadas de acordo com regulamentos:
1) A igreja local, com jurisdição sobre uma comunidade específica.
2) A Associação, com jurisdição sobre igrejas locais de um território específico.
3) A União, com jurisdição sobre um grupo de Associações de um território específico.
4) A Divisão, com jurisdição sobre um grupo de Uniões de um território específico.
5) A Associação Geral, com jurisdição mundial.
![]() |
| Presidente e vicepresidentes da Associação Geral |
![]() | ||
| Mapa da Divisões |
![]() |
| As Uniões que formam a Divisão Sulamericana |
Cada área de jurisdição é também um nível hierárquico. Sendo a Associação geral o nível superior. Sem essa estrutura o leviatã adventista não conseguiria estar presente em todas as partes para exercer seu poder soberano.
A IASD tem manuais, estatutos e livros de praxes que regulamentam de forma fixa e estável as qualificações, os meios de coerção, os direitos e deveres das autoridades eclesiásticas e de seus funcionários subalternos em cada jurisdição.
Uma característica original da burocracia adventista é que os mesmos objetivos, deveres, procedimentos e quadros de autoridades e funcionários se repetem nessas cinco áreas de jurisdição. Em cada uma dessas áreas a função administrativa se realiza mediante três grupos: 1) os funcionários — inclusive as autoridades eclesiásticas; 2) a comissão executiva; e 3) a assembleia — grupo de votantes.
Isso significa quintuplicar o esforço, o que torna onerosa, pesada e lenta a máquina administrativa. Porque acreditam que essa gigantesca relojoaria é resultado de “luz especial” concedida por Deus aos pioneiros, a elite dominante adventista insiste em mantê-la. Na verdade, ela agrada às autoridades eclesiásticas pelo fato de tornar possível a distribuição de uma quantidade exagerada de cargos para parentes e amigos que lhes garantam lealdade.
Para Max Weber, os itens 1 a 3, transcritos anteriormente, constituem a “autoridade burocrática”, que define —como geralmente o fazem os sociólogos— como “poder legitimado” (págs. 229 e 230). Ele afirma que é característica das burocracias procurar exercer o poder de forma legitimada. Para entender o conceito de poder legitimado, é preciso começar pelo que Max Weber (pág. 211) entende por poder: “a possibilidade de que um homem, ou um grupo de homens, realize sua vontade própria numa ação comunitária até mesmo contra a resistência de outros que participam da ação”.
Segundo David Berry, nessa definição “a posse do poder implica não apenas a capacidade do indivíduo de controlar suas próprias atividades, mas também de controlar as atividades de outros. Poder nesse sentido é poder de algumas pessoas sobre outras.” E mais adiante ele esclarece: “o poder torna-se autoridade quando o seu exercício é considerado legítimo, certo e apropriado pelos que são submetidos a ele” (Ideias Centrais em Sociologia, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, pág. 137 e 143).
É importante ter em conta que o conceito weberiano de autoridade burocrática inclui a apropriação centralizada de todos os instrumentos de administração, especialmente dos recursos financeiros e dos meios de coerção. É exatamente isso o que acontece na administração centralizada da IASD.
Max Weber não vê o poder burocrático como uma espécie de fator externo, físico ou material que determina as relações sociais. Não é entendido como força física, e sim como relação social. O tipo de autoridade caraterístico da burocracia é o de autoridade legal-racional, no qual o poder é considerado legítimo porque está de acordo com regras ou normas escritas. Ou seja, o poder burocrático das autoridades da IASD não é uma espécie de fator externo, como o poder dado por Deus ou por Jesus Cristo para a salvação, mas o poder que elas se arrogam nas regras ou normas que elas mesmas elaboram. Esta é sua verdadeira base de legitimidade. Tampouco é uma autoridade voltada para a salvação do ser humano. É, por princípio, uma autoridade voltada para a dominação. Segundo Max Weber, a burocracia é a “dominação do funcionário” (nos regimes autoritários é a “ditadura do funcionário”).
Max Weber (The Theory of Social and Economic Organization, Nova York, Free Press, 1947, pág. 328) distingue três tipos de autoridade de acordo com sua base de legitimidade. Trata-se de uma tipologia para fins de classificação. Ou seja, são “tipos ideais”, que na prática não aparecem como tipos puros, e sim combinados:
1) Autoridade tradicional. É característica das estruturas centralizadas despóticas. O poder se torna legítimo porque está de acordo com as tradições. A primeira edição do Manual da IASD (1932) era uma compilação das normas e práticas tradicionais das igrejas adventistas dos EUA, e que haviam sido levadas a outras partes do mundo pelos missionários adventistas. Tais normas e práticas seguem o sistema presidencialista e parlamentar dos EUA.
2) Autoridade legal-racional. Característica da burocracia moderna. O poder é considerado legítimo porque está de acordo com regras ou normas escritas. Este é o tipo de autoridade mais usado atualmente na função administrativa da IASD.
3) Autoridade carismática. Constitui a antítese das anteriores porque se baseia apenas no carisma pessoal. Conforme já vimos, Ellen G. White é a líder carismática da IASD, e o Manual da IASD está fundamentado nas ideias e orientações dadas por ela em seus escritos.
![]() |
| Hellen G. White, a autoridade carismática |
O seguinte parece claro: a autoridade legal-racional é exercida atualmente de acordo com normas e práticas estabelecidas inicialmente pela autoridade tradicional dos pioneiros e pela autoridade carismática de Ellen G. White, no começo da organização da IASD.
A função administrativa burocrática da IASD pode resumir-se assim de acordo com as normas administrativas: de modo geral, regula as relações do homem com o sobrenatural. De maneira mais específica, regula a prática da religião de acordo com seu ponto de vista; promulga a doutrina que defende; seleciona, forma e socializa especialistas religiosos e administradores; determina a ordem hierárquica entre eles; estabelece a base, a extensão e a natureza da autoridade religiosa sobre os membros e de seu poder territorial; controla os períodos administrativos, instituições, prédios, objetos religiosos e todos os bens adquiridos pela comunidade adventista.
Os estatutos, as praxes e normas denominacionais determinam que a função administrativa se realize principalmente mediante três funções, que são de competência dos funcionários (inclui as autoridades religiosas, consideradas na burocracia como “altos funcionários”) em qualquer sistema burocrático moderno. São as seguintes:
1) Função regulamentária. Determina os objetivos, as atividades regulares para alcançá-los, as áreas de jurisdição, os procedimentos institucionais, cria normas que estabelecem deveres e direitos.
2) Função executiva. Consiste em nomear, supervisionar, sancionar, dirigir e transferir subordinados. Elaborar e justificar orçamentos. Realizar ou autorizar despesas. Celebrar contratos. Efetuar compras. Representar a área de jurisdição perante terceiros. Procurar cercar-se de “servidores” que lhes garantam lealdade.
3) Função jurisdicional. É a intervenção, de maneira semelhante à judicial e dentro das respectivas áreas de jurisdição, em assuntos de natureza pendenciosa, tais como insubordinação, desonestidade, heresia, quebra de princípios éticos e de regulamentos, conflitos entre funcionários. Para resolver tais assuntos, os funcionários têm à disposição meios de coerção.
O processo decisório embutido na função administrativa também é completamente controlado pelas autoridades eclesiásticas e seus funcionários subalternos. As autoridades eclesiásticas dirigem a assembleia e a comissão executiva, formadas em sua maioria por funcionários subalternos, principalmente nos níveis superiores de administração.
Isso tudo mostra a extensão do poder que o leviatã adventista exerce através dos funcionários da IASD.
SISTEMA DE MANDO E SUBORDINAÇÃO
A segunda característica da burocracia dada por Max Weber (pág. 230) refere-se às relações de autoridade entre categorias ordenadas sistematicamente:
“Os princípios de hierarquia dos postos e dos níveis de autoridade significam um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação, no qual há uma supervisão dos postos inferiores pelos superiores.”
Na burocracia adventista, a hierarquia dos postos (ver o quadro seguinte), isto é, o sistema de mando e subordinação, acontece dentro de cada nível e entre os níveis de administração. Neste último caso, cada nível está subordinado ao imediatamente superior: as igrejas locais estão subordinadas às Associações; as Associações estão subordinadas às Uniões; as Uniões estão subordinadas às Divisões e estas estão subordinadas à Associação Geral.
- ÁREAS DE JURISDIÇÃO FIXAS E OFICIAISordenadas de acordo com normas administrativasHierarquiaCargoAtividade regular e contínua
Autoridades Presidente Exerce a autoridade máxima na área Secretário Preparação e arquivamento de documentos administrativos Ecônomo Controle financeiro Subordinados Ação Missionária Coordena a ação proselitista Assistência Social Coordena o serviço assistencial aos necessitados Assuntos
Cívico-religiososPromove a liberdade religiosas e as relações entre autoridades civis e religiosas Comunicação Coordena a comunicação interna
e externaEducação Coordena e orienta o sistema educacional Escola Sabatina Coordena o estudo regular e sistemático da Bíblia Jovens Coordena a atividade dos jovens Ministerial Coordena e orienta a atividade pastoral Mordomia e Desenvolvimento Coordena o sistema de arrecadação de dízimos, ofertas e outros donativos Publicações Coordena o sistema de vendas e distribuição de publicações Saúde Coordena a difusão dos princípios de saúde e assistência aos doentes Temperança Coordena os programas e atividades para combater o tabagismo, o alcoolismo e outros vícios nocivos à saúde Auxiliares Diversos: secretárias, contabilistas, auxiliares de escritório, etc. Auxiliam as autoridades eclesiásticas e seus subordinados em suas respectivas atividades
Os cargos e nomenclaturas eram os usuais quando este trabalho foi escrito.
Max Weber (pág. 230) assinala que esse sistema oferece aos governados a possibilidade “de recorrer de uma decisão de uma autoridade inferior para a sua autoridade superior, de forma regulada com precisão”. É isso o que o Manual da IASD (pág. 46) determina:
“Quando surgem diferenças nas organizações e instituições, ou entre as mesmas, é apropriado apelar para a organização que se lhe segue em superioridade, até alcançar a Associação Geral em assembleia ou concílio anual da Comissão Executiva. No ínterim entre essas assembleias, a Comissão Executiva constituirá o corpo de autoridade final em todas as questões em que se possa desenvolver uma divergência de ponto de vista, e a decisão dessa Comissão controlará esses pontos controvertidos; essa decisão, porém, poderá ser revista numa assembleia da Associação Geral ou num concílio anual da Comissão Executiva.”
Max Weber afirma: “Com o pleno desenvolvimento do tipo burocrático, a hierarquia dos cargos é organizada monocraticamente”. É exatamente o que acontece nos postos de cada nível de administração da IASD: para cada posto é designado apenas um indivíduo.
Continua dizendo Max Weber: “Uma vez criado e tendo realizado sua tarefa, o cargo tende a continuar existindo e a ser ocupado por outra pessoa”. Este detalhe é fácil de se comprovar comparando as várias edições do Manual da IASD. Geralmente, cada nova edição acrescenta cargos novos criados pela máquina burocrática e que tendem a se perpetuar no sistema.
DOCUMENTOS ESCRITOS E ESCRITÓRIOS
Max Weber (pág. 230) apresenta assim a terceira característica da burocracia:
“A administração de um cargo moderno se baseia em documentos escritos (‘os arquivos’), preservados em sua forma original ou em esboço. Há, porém, um quadro de funcionários e escreventes subalternos de todos os tipos. O quadro de funcionários que ocupe ativamente um cargo ‘público’, juntamente com seus arquivos de documentos e expedientes, constitui uma ‘repartição’. Na empresa privada, a ‘repartição’ é frequentemente chamada de ‘escritório’.”
A essa característica, ele acrescenta o seguinte comentário:
“Em princípio, a organização moderna do serviço público separa a repartição do domicílio do funcionário e, em geral, a burocracia segrega a atividade oficial como algo distinto da esfera da vida privada.”
![]() |
| Escritórios da Associação Geral |
Em todas as áreas de jurisdição da administração da IASD há escritórios, os quais são o centro da função administrativa. Sob o comando do Secretário, há funcionários e auxiliares cuidando dos arquivos de documentos e expedientes. Há também uma separação estrita entre o cargo do funcionário e sua residência no sentido expressado por Max Weber: o funcionário não possui os mecanismos da administração; não pode apropriar-se do cargo; o cargo é uma função exclusiva; há uma separação estrita entre a propriedade privada do funcionário e a propriedade da IASD.
Durante longos e diversos processos, a burocracia superou a inter-relação do cargo público com o serviço pessoal, as relações de parentesco e os interesses patrimoniais que existia em sistemas anteriores. O surgimento do Estado nacional foi decisivo nesse processo. A separação entre cargo e funcionário significa que os deveres são prerrogativa da IASD, e não de indivíduos ou grupo de indivíduos dedicados à defesa de seus próprios interesses.
PREPARO TÉCNICO E EXPERIÊNCIA
As restantes características da definição de burocracia de Max Weber (págs. 231 e 232) são consideradas juntas agora, porque são mais evidentes. Elas se referem aos requisitos formais para que uma pessoa possa ser empregada na organização burocrática.
Vejamos a quarta característica:
“A administração burocrática, pelo menos toda a administração especializada —que é carateristicamente moderna— pressupõe habitualmente um treinamento especializado e completo.”
Os cursos superiores das instituições educacionais adventistas dão prioridade à formação de funcionários. Além destes, são empregados outros preparados fora dessas instituições. Atividades de treinamento são constantes na IASD.
Segue a quinta característica:
“Quando o cargo está plenamente desenvolvido, a atividade oficial exige a plena capacidade de trabalho do funcionário, a despeito do fato de ter rigorosamente delimitado o tempo de permanência na repartição ou escritório, que lhe é exigido.”
Uma organização como a IASD não poderia deixar de exigir “plena capacidade de trabalho” de seus funcionários. Ela exige não só dedicação exclusiva como também não permite outra ocupação fora do horário de trabalho regular.
Por fim, a sexta característica:
“O desempenho do cargo segue regras gerais, mais ou menos estáveis, mais ou menos exaustivas, e que podem ser aprendidas.”
Além das regras contidas nos manuais, livros de praxes e estatutos, há outras preparadas pelos diversos “departamentos”. Reuniões regulares são realizadas, nas quais os funcionários mais experientes, tornam conhecidas essas normas.
A conclusão não pode ser outra senão esta: a função administrativa na organização adventista se encaixa em todas as características da burocracia apresentadas por Max Weber, com algumas particularidades.
CENTRALIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO
Diz Max Weber (pág. 257): “A estrutura burocrática vai de mãos dadas com a concentração dos meios materiais nas mão do senhor”. Esta concentração é o controle centralizado da administração mediante a apropriação de recursos financeiros exclusivos, do controle da máquina administrativa e da jurisdição territorial (ver págs. 238 e seguintes).
Em seu estudo da burocracia, Max Weber constatou que esta centralização é uma característica do desenvolvimento das grandes empresas capitalistas, que se inspiraram na burocratização da guerra. As organizações militares centralizadas haviam demonstrado eficiência na guerra organizada. E isto influenciou a concentração dos meios de organização em outras esferas. É daí que vem a tendência da IASD à centralização, e não dos conceitos teológicos paulinos “cabeça” e “corpo de Cristo”, como dá a entender o Manual da IASD.
Apesar de Max Weber referir-se à centralização, me parece mais adequado analisar a estrutura burocrática da IASD junto com a tendência oposta: a descentralização. Ambas são situações que se complementam no campo administrativo, formando dois polos de atração da função administrativa. A centralização total impediria à máquina administrativa da IASD de realizar suas funções em áreas periféricas. Por outro lado, a descentralização total significaria o desaparecimento da organização centralizada. O mais correto é tratar de situar a posição relativa da burocracia adventista no contínuo centralização/descentralização, e verificar se ela é “mais” ou “menos” centralizada.
Para tal, é preciso ter em conta dois marcos. O marco geográfico —estabelecido pela base territorial da autoridade eclesiástica— requer que se explicite a relação entre o todo e suas partes integrantes. E o marco hierárquico requer que se torne clara a distribuição da autoridade eclesiástica entre os cinco níveis de administração. Sendo que esses marcos não se encontram separados na realidade, vamos abordá-los juntos.
A situação de centralização e descentralização é muito complexa na estrutura burocrática da IASD. Seria demorado e enfadonho estabelecê-la com precisão em todos os detalhes. Portanto, nos contentamos com uma visão geral.
Os cinco níveis de administração da IASD formam os seguintes pares de relações: Associação Geral/Divisão, Divisão/União, União/Associação e Associação/Igreja local. O sistema permite só essas relações e nessa ordem, tanto no sentido ascendente como no descendente. Por exemplo, o par de relação Associação Geral/Igreja local não é possível, porque o sistema não estabelece uma relação entre esses níveis. A relação entre eles é indireta, isto é, através dos pares de relações intermediários. Tais pares de relações constituem o sistema hierárquico de mando e subordinação, e a forma como é distribuída a autoridade eclesiástica com base territorial.
A hierarquia tem base territorial. Cada nível de administração abrange o território do nível imediatamente inferior, e controla suas atividades. Deste modo, o sistema opõe os poderes de funcionários cuja autoridade oficial se estende sobre um território mais vasto, aos poderes de funcionários cuja autoridade está limitada a territórios menores.
A centralização ocorre no sentido ascendente da estrutura: cada nível centraliza uma parte fundamental do controle administrativo, do poder decisório, dos recursos financeiros e da jurisdição territorial com relação ao nível imediatamente inferior. A descentralização acontece no sentido descendente. Vejamos dois exemplos dessas tendências opostas de um mesmo contínuo.
O primeiro, é o par Associação/Igreja local. O controle centralizado das comunidades locais pela Associação é possível porque esta tem como prerrogativa exclusiva a administração do dízimo, a nomeação de pastores e a propriedade dos prédios. A descentralização acontece porque a realização das atividades que visam a alcançar os objetivos religiosos da Associação ficam a cargo das comunidades locais.
O segundo, é o par Associação Geral/Divisão. A Associação Geral é a máxima autoridade. Sua jurisdição territorial é global, e deve atender os interesses mundiais. É o único nível de administração que pode estabelecer normas gerais para a IASD. Mas a centralização pura e simples na Associação Geral em Washington, DC, não conseguiria superar os interesses regionais e que podem constituir uma ameaça à unidade. Por outro lado, teria dificuldades para adaptar seu programa mundial às particularidades de cada região. Através das Divisões, a Associação Geral centraliza a administração das Uniões, ao mesmo tempo que se descentraliza para adaptar-se às particularidades regionais. A descentralização não enfraquece a centralização, pelo contrário, a torna viável.
A organização adventista, assim como seu modelo, o Leviatã, não seria o que é sem a burocracia. Os que governam a IASD dividem a autoridade em níveis hierárquicos de administração que controlam tudo, inclusas as forças responsáveis pela continuidade do poder.
JUSTIFICAÇÃO DA BUROCRACIA
Como a elite dominante da IASD enfrenta a monstruosidade do leviatã que criou, a gigantesca máquina burocrática de dominação? Vou apresentar um exemplo apenas. Trata-se da exegese mal feita, tendenciosa, comum nas teologias de dominação, esta vez da visão de Ezequiel 1-3 e 10, apresentada inicialmente por Ellen G. White e aproveitada mais recentemente por Walter R. Beach, ex-vice-presidente da Associação Geral.
Comparando a relojoaria do leviatã adventista com o trono de Deus transformado na visão, sob circunstâncias vigentes, em uma sofisticada cadeira de rodas, diz Ellen G. White (Testemunhos para Ministros e Obreiros Evangélicos, 1979, pág. 213):
“Para o profeta, uma roda dentro de outra, a aparência de criaturas vivas com elas relacionadas, parecia tudo intrincado e inexplicável. Mas a mão da sabedoria infinita é vista entre as rodas, e o resultado de sua operação é a perfeita ordem. Cada roda trabalha em perfeita harmonia com todas as outras.”
Essa autora compara as “rodas dentro de rodas” com os níveis de administração da IASD. Os parágrafos seguintes mostram que ela usa tal comparação para apresentar um modelo do mundo divino, aparentemente complicado, que se opõe à administração autocrática: as decisões devem ser tomadas em “comissões de conselho” e os dirigentes deveriam agir como “conselheiros”, não como “autoridades”. O autoritarismo é desnecessário, pois a “mão” de Deus age para por ordem na maquinaria administrativa, fazendo que suas partes operem em harmonia umas com as outras. O que ela propõe é impossível: que o mecanicismo do leviatã adventista não exerça aquilo para o qual foi criado — o poder de dominação..
Walter R. Beach retoma essa interpretação alegórica de Ellen G. White para justificar a complexidade da máquina administrativa da IASD, e sugerir que Deus a comanda e a torna eficiente. Sua palavras são as seguintes:
“A mensageira do Senhor [entenda-se Ellen G. White] sugere que a visão que o profeta Ezequiel teve às margens do rio Quebar pode ser um estudo proveitoso para nos ajudar a compreender a complexidade e eficiência da organização da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Ezequiel viu muitas rodas cruzando-se uma com as outras. Alto, acima destas rodas, ‘havia algo semelhante a um trono’ (Eze. 1:26). Ezequiel 10 registra uma cena semelhante, introduzindo a forma de uma mão humana que guia os seres celestes que impelem as rodas (ver verso 8). Esta mão representa a mão do Onipotente. O ‘trono’ e a ‘mão’ fizeram com que houvesse perfeita harmonia onde havia aparente confusão.
A maquinaria dos eventos humanos e da organização da Igreja requer muitas facetas e aparentes complicações. Os problemas com os quais os líderes da Igreja se deparam não são simples, exceto para os ignorantes e inexperientes. A despeito das complicações que surgem, a ‘mão’ que guia as rodas pode ser vista e nela podemos confiar.” (“Rodas dentro de Rodas”, in Revista Adventista, Setembro de 1979, págs. 12 e 13).
É evidente a conexão que Walter R. Beach estabelece entre as “rodas dentro de rodas” da visão de Ezequiel com os cinco níveis de administração da IASD. Diante da complexidade da organização adventista, sua tese é confiar na “mão” de Deus que guia as rodas e é responsável pela harmonia que existe nelas.
Minha tese é outra: muitos dos problemas com os quais se deparam os dirigentes adventistas são provocados pela complexidade da máquina administrativa, o exagero de níveis de administração e o exercício do poder burocratizado (este aparece como a dominação ou a ditadura dos funcionários, dependendo do desenvolvimento da IASD em cada parte do mundo).
Nesse artigo, Walter R. Beach usa um argumento falacioso — usa o que torna complicada a máquina administrativa adventista para afirmar que é justamente o que a faz menos complicada. Eis suas palavras:
“O sistema de organização adventista do sétimo dia torna-se menos complicado e mais compreensível quando nos conscientizamos de que a maneira de agir, o mesmo grau de responsabilidade e quadro de pessoal se repetem de maneira quase exata nos cinco níveis da administração da Igreja.”
A seguir vamos confrontar essa interpretação alegórica com a de Gerhard von Rad (Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, ASTE, 1974, vol. 2, págs. 51 a 69 e 211 a 216), e que é o resultado das mais recentes pesquisas sobre o profetismo. Em forma resumida, qual é o propósito dessa visão de Ezequiel segundo von Rad?
É o relato de como recebera a vocação profética às margens do rio Quebar. E de como, a partir desse momento, passou completamente para o lado de Deus. Na visão, Ezequiel assiste a uma manifestação tumultuosa da “glória de Deus”. Deus, rodeado pelos seres celeste, o investe de uma missão solene, difícil e sem esperança devido à obstinação dos receptores da mensagem. Numa espécie de ato celeste oficial, Ezequiel, como “embaixador”, recebe das mão do “Rei”, sentado no trono, um rolo no qual é precisado o conteúdo de sua missão
Mediante a visão, Deus arma o profeta para afrontar uma oposição que supera suas forças humanas. Torna o aspecto do profeta mais duro que pedra. O profeta, por vocação, fugia “às regras religiosas que a maioria tinha ainda válidas (e sabe-se o que isto significa para um homem do Oriente antigo) e que por isto se encontrava na obrigação de justificar, a seus próprios olhos e diante dos outros, sua situação nova e sem precedentes. O profeta presta contas de um acontecimento que o revestiu duma missão, dum saber e duma responsabilidade, e que o lançou sozinho diante de Deus. Isto obrigou o profeta a provar a legitimidade de sua posição de exceção face à multidão”.
O seres celestes e as rodas servem para transportar o trono de Deus à terra, no meio de uma tempestade, para entregar a vocação profética a Ezequiel. Portanto, a revelação feita ao profeta não tinha por objetivo fazê-lo aceder ao conhecimento das realidades internas do mundo divino. Ela se concentra sobre o acontecimento histórico, presente e futuro, pertencente ao círculo restrito da vida de Israel. Por isso, ao descrever a “glória de Deus”, Ezequiel mostra-se completamente isento de qualquer espécie de preocupação especulativa sobre o mundo celeste. A sua prudente descrição do mundo transcendente está repleta de figuras humanas que servem ao desígnio divino.
Conforme o resumo precedente, é descabida a interpretação organizacional dada ao texto bíblico em questão. Acredito que nenhum exegeta sério abordaria o texto nesse sentido, porque as Escrituras, em geral, e os profetas, em particular, não se ocupam das “formas” de governo em si mesmas. Tratam sim da bondade ou justiça, ou seus opostos, das estruturas sócio-políticas que prevaleciam na época.
A preocupação dos autores bíblicos é mostrar que Deus está presente na História também para julgar os acontecimentos sócio-políticos e reivindicar sua soberania. Tal julgamento não tem como referência a “forma” em si mesma como os povos estavam organizados, mas se são justas ou não, de acordo com o conceito bíblico de justiça. Mas que a visão do profeta Ezequiel sugere uma estrutura burocrática moderna de governo eclesiástico está fora de cogitação.
O único que se pode admitir, é que a referida visão oferece uma imagem ambientada na forma monárquica de governo — Deus é apresentado como um “rei”, sentado em seu “trono” e sendo transportado por seu “carro real” do mundo celeste. Mas isto não significa que Ezequiel esteja recomendando a monarquia. Os adventistas não admitem a forma monárquica de governo eclesiástico.
A interpretação organizacional da visão de Ezequiel apresenta outras dificuldades. Não é evidente que o texto estabeleça primeiro um momento de “aparente confusão” no movimento dos querubins e das rodas, e, depois, um outro momento de “perfeita harmonia” estabelecida pela intervenção da “mão de Deus”. O texto se refere apenas a uma ação harmoniosa dos seres celestiais e das rodas (Eze. 1:12, 19-21). Parece estranho admitir que a “glória de Deus” irrompe primeiro de maneira desorganizada e depois se organiza. A narrativa tem todas as características de uma irrupção e não de um esquema que começa em confusão e termina em organização.
Walter R. Beach afirma que a “mão” de Eze. 10:8 “representa a mão do Onipotente”, e que ela e o “trono” (de Deus) estabeleceram harmonia onde havia aparente confusão. Porém, no texto se trata de mão de querubim e não de mão de Deus. O texto faz distinção entre “mão de Deus” (Eze. 1:3; 3:14, 22 e outros) e a “mão dos querubins” (Eze. 1:8; 10:7, 8, 12, 21). Ou seja, Ezequiel é explícito quando fala de uma ou de outra “mão”. A confusão entre as “mãos” criada por Walter R. Beach se resolve lendo juntos os versos 7 e 8 de Eze. 10: trata-se da mão dos querubins. E nada se diz quanto a elas serem usadas para por ordem na confusão das rodas. (Tampouco diz que havia confusão nas rodas).
E o mais importante: os quatro querubins e as quatro rodas são o meio de transporte celestial do trono de Deus. A confusão não estava nas “rodas”, mas na mente do profeta. Num primeiro momento, ele não compreendeu o que eram essas rodas vivas e os seres celestiais que as comandavam. Só mais tarde (Eze. 10:13, 20), ele percebe que se tratava do “carro” real que transporta o trono de Deus. Assim como o rei terreno tem o seu carro real, Deus tem o seu para transportar seu trono. A diferença entre ambos carros é que o de Deus tem rodas vivas e é “puxado” não por cavalos, mas por querubins e viaja no meio de uma “tempestade”.
A pergunta pertinente é: que relação tem com a organização eclesiástica a imagem da divindade, que hoje nos parece grotesca, ocupando o trono transformado em uma cadeira de rodas, com o qual Deus podia transportar-se livremente pelos quatro cantos do Universo?
Nenhuma! Trata-se de muita imaginação, que só é possível valendo-se do método exegético de Origens de Alexandria, cujo principio fundamental é este: o texto diz uma coisa, mas o seu significado é outro. Usando o método alegórico de interpretação podemos fazer com que as Escrituras digam o que queremos que elas digam.
A ORGANIZAÇÃO COMO OBJETO DE FÉ
É característica da IASD valorizar ao extremo sua organização e defendê-la como se fosse um dogma. (O senso crítico, nesse sentido, é considerado como “rebeldia” ou “apostasia”.) Um exemplo disto, encontra-se no artigo 9 do “voto batismal” (Manual da IASD, pág. 55), uma fórmula doutrinária breve, mediante a qual são indagados os candidatos ao batismo e os que são aceitos por profissão de fé. Esse artigo pergunta: “Crê na organização da Igreja...?”
Essa fórmula doutrinária foi elaborada de acordo com a fórmula tradicional de antigos credos cristãos —por exemplo o Símbolo Niceno— que começam com a palavra “creio” (credo em latim). O artigo 9 corresponde a dizer “Creio na organização da Igreja”. O termo “organização” é mencionado explicitamente. O que contrasta com os credos tradicionais que dizem: “Creio na comunhão dos santos”.
É evidente que a fórmula adventista substitui “comunhão” por “organização”. Pode ser considerada uma maneira indireta de dizer: “Creio na estrutura burocrática e representativa da Igreja”. Significa que a organização burocrática e representativa foi colocada como artigo de fé! Este tipo de coisas são insuportáveis para os teólogos sérios.
Não vamos discutir aqui essa questão, e sim apresentar um resumo do comentário de Karl Barth (Bosquejo de Dogmática, págs. 223 a 235) sobre o Símbolo Niceno, que serviu de modelo para a IASD elaborar seu “voto batismal”. Esse comentário não foi superado, e fornece conceitos que podem ser o ponto de partida para uma discussão séria.
Para Barth, a Igreja é fundamentalmente Gemeide (= comunidade, no sentido de “congregação” convocada mediante o chamamento do Espírito Santo, para participar da Palavra e do Sacramento de Cristo). É uma reunião de seres humanos que pertencem a Cristo, realizada pelo Espírito Santo. Acontece em obediência a um desígnio superior e não por um acordo celebrado entre seus componentes. É nisto que as comunidades cristãs diferem das comunidades naturais ou históricas.
Credo ecclesiam significa “creio na existência da Igreja”, isto é, que a congregação à qual pertenço é uma santa Igreja universal, porque na Igreja os indivíduos e as congregações estão unidos um a outros em Jesus Cristo, pelo Espírito Santo, não por uma organização.
Desse modo, credo ecclesiam não significa a divinização de nenhuma criatura, porque não se faz da Igreja o objeto da fé; não se acredita na Igreja, e sim que nessa congregação acontece a obra do Espírito Santo. Dentro desta linha correta de pensamento, não se pode aceitar que a organização da Igreja se torne objeto de fé, e se diga “Creio na organização da Igreja”, que, no fundo, significa dizer “Creio no leviatã adventista, criado para governar a Igreja”...






Nenhum comentário:
Postar um comentário